sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Breve ensaio acerca da felicidade

Princípio, lógica e implicações inconscientes.
Por
Enoque Portes
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Este breve ensaio não procura abordar diretamente os grandes filósofos e suas obras especificamente. Contudo, firmando-se em meus poucos conhecimentos da filosofia universal, o pensamento aqui expresso é atinente à obra de Schopenhauer, mais especificamente ao 4º volume de sua obra ‘O mundo como vontade e representação’, quando este trata no início da obra do assunto ‘vida e morte’.

Do princípio.
Um homem feliz pode ser reconhecido exatamente por qual estado emocional?
O que diferencia a felicidade da dor?
Tudo pergunto pois reconheço que houve algum princípio motivador, o homem, ao descobrir-se, provavelmente identificou e restringiu a ‘felicidade’ como conceito. Mas ele realmente sentiu-se ‘feliz’?
Os primeiros homens vagavam pelas trilhas virgens desse mundo, concebendo apenas o instante. O objetivo intrínseco a essa ‘caminhada’ era a caça de alimento e a procriação (porquanto o estar nômade destes logo implica que o conceito ‘vida’ correlativamente traduz-se em ‘caminhada’. O conceito ‘vida’ como princípio exclusivo e ingênito a um grupo, é estruturado a partir da visão que o indivíduo cria das variantes do meio, e a incidência de variantes que o indivíduo não percebe conscientemente. Assim, o nomadismo com sua constante alteração do plano imagético e do modo de agir, infere a esse indivíduo que o viver não é propriamente um estado em si mesmo, antes, um incerto e imanente surpreender). Eram vagabundos desprovidos de memória e consciência temporal. A memória dirige o cérebro a apreender e estocar imagens passadas. Essas imagens são utilizadas em situações ulteriores. Em não havendo memória, não haveria possibilidade de se compreender qualquer emoção externa ou interna. Isso é lógico ao nos inquirirmos em como podemos saber que sentimos dor (dor como princípio consciente) se não podemos recordar de haver sentido algo semelhante. As imagens que o cérebro agrupa são responsáveis por provocar essas sensações, já que quando o cérebro as apreende e as estoca, a sensação emocional desencadeada na primeira ocorrência dessas imagens, se repetirá invariavelmente sempre que aquelas imagens se configurarem novamente. Isso nos remete a pensar que os primeiros homens quando caçavam, por exemplo, ao serem arranhados ou mordidos por suas presas, sentiam desconforto e o instinto os impulsionava a fugir. Mas em função da constante recorrência desses incidentes, sempre que intentavam caçar, pouco a pouco e com uma crescente nitidez de detalhes, começaram a se recordar das caçadas anteriores e das sensações horríveis que essas lhes provocavam. Devido essa imagem formada (essa referência firmada em fatos anteriores) tomaram decisões de se proteger do que conceberam se tratar da dor. Com isso, afirmo eu, que a primeira sensação a ser percebida conscientemente por esses primitivos, nossos ancestrais, trata-se da dor. A sucessão de ferimentos corporais foi responsável pela instituição de um conceito que restringiu todas as sensações desagradáveis em um mesmo plano consciente e posteriormente inconsciente. Esse conceito introduziu no homem a constante necessidade de extirpar a dor, de desenvolver técnicas para abrandá-la, fazê-la suportável. O homem ao caminhar, ao agir, ao expressar, percebia que o desconforto e a dor sempre o rodeavam. O conceito dor tornou-se intrínseco a toda raça humana. O cérebro havia já agrupado centenas de imagens coerentes com o novo conceito, oferecendo a esses seres primitivos e instintivos uma única experiência racional e consciente. Viviam esses infelizes atônitos, aterrorizados, nômades em busca de segurança e abrigo. Todas as demais sensações permaneciam ofuscadas pelo terror que a dor empreendia em seus corpos e espíritos.
Mas o suceder dos séculos amaina os ânimos e caleja os corações mais sanguíneos. As parteiras observaram que, ao findar o labor do parto, as mulheres tornavam-se sensíveis e amáveis, sendo-lhes quase impossível não sorrir ao fitarem o rebento. Uma paz reinava tépida e pueril, aqueles rostos luziam amor e alívio, mas não transpareciam lembrar-se da dor. Da mesma sorte os homens febris e quase a morte, quando após alguns dias sentiam-se curados, levantavam-se lépidos e corajosos, sorrindo dispostos por simplesmente reverem o que diariamente viam. Esses homens corriam por toda parte fitando o ambiente, tudo lhes saltava aos olhos belo e novo. O cérebro estava sendo forçado a estruturar novos padrões sensório-imagéticos. Um conceito tomava forma e emergia de um anterior preestabelecido. Após um período de aflição, esses homens sentiam essa nova sensação tomar seus corpos e suas mentes, e passaram a perceber que deviam buscá-la com mais freqüência, um desejo urgente de isolá-la da dor, fazê-la uma sensação que pudesse ser alcançada por qualquer homem em qualquer situação.

Da lógica.
A dor é a essência primária de nós seres humanos. Constato que ela foi a responsável pela conscientização de todas as demais sensações que caracterizam a índole humana. Tal índole propicia ao homem o juízo aproximado do estado emocional no qual se encontra. Perguntamos por que a dor foi responsável pela consciência de todas as demais sensações. Questionemos em primeiro plano o que é dor.
Acredito que a dor é toda a sensação que provoca no homem o desejo de livrar-se dela com todas as forças que possui. Digo que o instinto não incorpora essa sensação como parte natural do ciclo. Isso ocorre, pois a dor expõe a fragilidade oculta, sendo um prenúncio da essência mortal desse homem. Essa pequenez frente à morte remete-o a renegá-la juntamente com quaisquer sensações ou ícones emocionais que o induzam a perceber a própria finitude e a impossibilidade de encontrar um subterfúgio. É inerente o desejo do homem de viver e ser grandioso, sendo ubíquo a sua inconsciência o repúdio à morte e seus atributos. Todas as demais sensações, como a esperança, a felicidade, o desejo sexual, não foram identificadas racionalmente antes da identificação da dor, pois, diferentes desta última, são inerentes ao instinto humano de preservação e sobrevivência. Estas puderam ser percebidas racionalmente já que quando do aplacar da dor, afloravam com mais intensidade, possibilitando a esses indivíduos percebê-las nitidamente.
Quando digo de uma percepção racional, reitero que, nestes primitivos a memória de que determinada ação ou modo de ver redundava em um determinado estado físico invariavelmente, é ela, a memória, tão somente, o estado racional a que refiro-me.
Questionemos em segundo plano especificamente a felicidade.
A felicidade é atributo direto da dor. Como a escuridão é a inexistência da luz, não contendo essência própria, a felicidade pode ser compreendida como o declínio da dor, e naturalmente a emersão do prazer. Em função de a dor interromper o ciclo instintivo humano, quando essa é aplacada, o ciclo é retomado, sendo todas as sensações pertinentes a esse ciclo percebidas. E esse retomar é o motivador direto da consciência do prazer ou felicidade. O homem pôde dimensionar o prazer quando identificou e estruturou o que lhe provocava aflição. Ao sistematizar no cérebro uma imagem de todos os eventos emocionais e físicos que proporcionam aflição, o cérebro concebeu que tudo não identificado como dor, logo seria prazer e contentamento. Uma definição estabelecia-se, o prazer é alcançado não por buscá-lo exclusivamente, mas ao se atenuar a dor. A partir desse instante iniciou-se a eterna busca do homem pela eliminação da dor e a conquista do prazer. A busca desse estado de espírito superior fe-lo supor que quando pudesse ser senhor da dor, gozaria da plenitude da felicidade. Tal ideal incrustou a alma humana. Uma alma atormentada que via diante de si uma debilidade sufocante aterrorizando a cada individuo sem exceção. Fórmulas e métodos vários passaram a traçar caminhos ao encontro dessa felicidade. O alívio da dor já não era suficiente a esse homem, influenciado por tantas teorias ele se tornou cego diante da possibilidade da existência de um prazer que suplantaria toda a sua aflição, extirpando-a milagrosamente. A real essência da felicidade perdeu-se, cedendo lugar a um conceito que condizia com a índole frágil da raça humana, que sempre procura subterfúgios em detrimento de sua impotência. Todo desejo frenético acentua a aflição e incita a violência. Países e reis foram instituídos por homens que partilhavam dos mesmos princípios que levariam a obtenção da felicidade. Separaram-se os homens, tornaram-se individuais e egoístas. A separação trouxe consigo a discórdia e a guerra. Os líderes tomados pela luxúria e a vaidade (também inerentes ao instinto humano) implantaram em cada homem que o poder e a posse proporcionavam o prazer de que todos buscavam. Por mais sensatos e dignos que todos os demais pensamentos se revelassem, Tal pensamento sobrepujou a todos esses até nossos dias. A felicidade tornou-se um devir para o homem, tudo que ele conquista e constrói é almejando tal sublimação. No instante que esse homem incorporou que a verdadeira felicidade não era em decorrência do alívio da dor, mas algo superior que podia ser alcançado mediante a técnicas diversas, a essência do homem se deteriorou paulatinamente, reduzindo-o a um ser cego e entorpecido por um desejo apenas conceitual e teórico.
Constato que o propósito único de extirpação da dor, este sendo partilhado em suas diretrizes por um grupo específico de homens, propiciou a formação das primeiras sociedades. Estes grupos notando que as posses e o julgo de outrem obnubilavam e faziam suportáveis dores intensas, paulatinamente revestiram-se de força e técnicas para subjugar, aproximando na guerra, homens que antes andavam solitários. Portanto, a instituição social não explica-se em si mesma, antes, em sabendo que esta última resulta do desejo pela continuidade do prazer. Assim, as religiões, as técnicas e códigos de convivência e legislações, serviram, nos primórdios, como fórmulas de condução a um estado de prazer em menor tempo e mais duradouro. Ao se afirmar que os homens uniram-se uns aos outros com vistas a tornarem-se mais fortes contra outros grupos, desconsidera-se deliberadamente o porque da guerra entre estes em detrimento à necessidade de união. Sim, uniram-se no escopo de fortalecerem-se, todavia, fortaleciam-se na defesa de um ideal comum e mui precioso, já que este, quando das vitórias em batalha, resultava em exultação.

Das implicações inconscientes.
A deturpação completa do verdadeiro sentido em que se firma o conceito felicidade, acarretou ao caráter humano a inquietude e a incerteza. As várias definições que tentam explicar a felicidade, apenas servem para demonstrar o quanto o homem caminha em um confuso entrelaçado de ideais. Paradoxalmente, a busca por essa felicidade é responsável pela cobiça e a melancolia. Um ser débil ao confrontar-se com tal debilidade não a fita diretamente. Ele se esgueira utilizando-se de argumentos ilusórios, acobertando tal fraqueza com jargões dos quais nunca se prestou a analisar os fundamentos lógicos. Entendo que a definição de felicidade corrente em nossos dias, pertence ao nicho desses jargões. Definições apenas restringem a essência transcendental dos universais. O homem em seu esfaimado anseio de traçar linhas e estruturar equações conclusivas, não se limita ao plano material, mas adentra ao plano emocional com os mesmos padrões e métodos da matemática e da física. Dissecam as sensações eliminando suas nuances imperceptíveis e incompreensíveis, reduzindo um estado de espírito complexo e multifacetado, em algo óbvio e prático. É como um caçador que ao apanhar um grande animal selvagem, não se dá por satisfeito apenas em relatar a história do abate, mas empalha-o dependurando-o em sua sala intentando fazê-lo transparecer vivo e feroz. Mas é nada mais que um espectro desidratado do que fora em plenitude. Uns dizem que ser feliz é viver cada instante em intensidade, outros que a felicidade se conquista aos poucos, outros ainda, que a verdadeira felicidade está em se desprender da vida material. Mas todos são sincrônicos em afirmar que lhes falta algo para que se tornem realmente felizes. Vagueiam por toda uma existência ávidos pela sublimação de um conceito que se contradiz de acordo com a etnia ou classe social. Nascem esperando e se vêem velhos e cansados esperando ainda. Cada homem que diz não haver mais esperança de ser feliz, é tratado como doente. É uma lei, se a transgredir, como um salteador, é preso e sentenciado.
No entanto os homens que são denominados como tristes e desesperançados, digo eu que os tais são os que mais se aproximam da essência humana. A desilusão provoca no homem o desinteresse de buscar e querer. Portanto ele se torna impassível e resignado. Entendo que a esse homem, por guardar grande dor e reconhecer que essa é inerente, ao se aplacar tal dor por algum evento alheio e inusitado, ele sentirá uma paz reconfortante a qual afirmo se tratar da felicidade.
Os homens superestimaram e fantasiaram uma sensação que é simplesmente resultado de nuances naturais à dor durante um curso existencial. Digo que nossa alma empreende uma busca insistente pela paz e o alívio. Ao fatigarmos nossos corpos desejamos nos recolher e desfrutar do descanso que é sentir o afrouxar dos músculos provocando-nos uma sonolência desprovida de qualquer emoção amável ou aterrorizante, apenas uma inércia muda quase animal. E também quando estamos em meio a uma turba com emoções afloradas e somos impelidos a conciliar ou atenuar ânimos exaltados, logo sentimo-nos obscuros e confusos, não sendo-nos possível reconhecer quem estamos sendo racionalmente. Desejamos nesse instante o silêncio e a solidão. Saímos a caminhar não nos preocupando com o itinerário, apenas caminhamos. Enquanto toda aquela torrente de palavras e argumentos se esvai, sentimo-nos lânguidos e livres. Nos dois casos acima a aflição foi aplacada, tanto no físico quanto no plano mental. O homem sábio reconhece esses instantes como frêmitos de contentamento e tranqüilidade, os quais, mesmo espasmódicos e aleatórios, são (esses instantes) o ânimo para ainda se haver desejo de viver. O desejo de viver que se mantém a partir do constante atenuar da dor é o próprio conceito de felicidade. Ao homem que equilibra a dor mantendo-a relativamente suportável, a vida não será demasiadamente terrível. Assim, o desejo de viver não pode reconhecer-se em si mesmo, mas como um correlativo do desejo de não morrer. O homem que deseja a morte aclara todas as nuances de sua debilidade, e caminha contra a natureza do ciclo. Da mesma sorte, crer em epifanias e em campos Elíseos, além de subterfúgios irracionais, tal como o desejo pela morte, é um deturpar do ciclo e a recriação e manutenção de maior possibilidade à decepção. O equilíbrio entre a dor e o alívio desta, não decepciona nem tampouco incita a ilusão do sonho. Se o homem não deseja a morte como alívio, antes a aceita como fim único e natural da existência, este homem é feliz, porquanto não espera da morte um feliz viver posterior, nem tampouco da vida um patamar preparatório de ritos para a eternidade.
O homem não pode e nunca poderá encontrar a felicidade onde espera encontrá-la. Estudos, reflexões analíticas e belas, apenas contribuem para a crescente mistificação de uma sensação simples e inata a todos. Criam-se ícones lúdicos como símbolos de felicidade, sendo sempre uma felicidade grandiosa e rica de detalhes que são dissonantes com o estado real de cada individuo e do próprio ciclo. É um turbilhão de informações fantásticas que mais se assemelham a um circo que a uma definição de uma vida tranqüila e humana. O homem instituiu para si uma sensação ideal que comporta todas as suas idiossincrasias de domínio e força. Portanto um ser feliz será sempre definido como alguém belo, corajoso e extrovertido. Claramente observamos que a concepção de felicidade de que partilhamos atualmente é um estereótipo absurdo, inconsistente, injusto e segregacionista. A busca insana por uma felicidade ideal é a causa do descontentamento tão evidente na maior parte dos indivíduos.
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Nota do autor: Esse ensaio trata-se de uma exposição pessoal que se utiliza de dados apenas argumentativos e filosóficos, não se valendo de fundamentação histórica.